quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Ouvir e somatizar

Fonte: lafrikana.com
Hoje embarco para Mombasa, para curtir meus últimos dias nesse país onde mais gosto: na praia! Lá vou buscar leveza, paz de espírito, descarrego... Essa semana foi pesada. Tão pesada que por alguns momentos não achei que fosse suportar. As mulheres que entrevistei trouxeram consigo suas histórias. Ouvindo-as, senti angústia, náuseas, tristeza intensa e impotência. Teve histórias que me tiraram o chão, me dilaceraram por dentro. Ainda preciso assimilá-las melhor, digerir tudo, e transcrever as entrevistas antes de postá-las aqui... Mas sem dúvidas o farei, pois elas precisam ser contadas. Suas histórias são suas armas, é com elas que vamos lutar pra mudar essa realidade, para empoderá-las numa sociedade tão machista e injusta. 
As entrevistas foram terça, e ainda sinto seus efeitos. Ontem passei mal o dia inteiro, tanta dor, meu corpo deveria estar reagindo à tudo que recebeu um dia antes. Ainda assim, valeu a pena. Meu tempo no Quênia está acabando. Em uma semana chego de volta ao Brasil (felizmente pra família, que reclama de saudades; infelizmente pra mim, que sinto que o tempo está longe de ter sido suficiente. É tanto a ser feito... Preciso voltar, disso eu sei!). Na próxima terça, meu último dia aqui, ainda farei uma última sessão com o grupo de mulheres. Fechar um pouco das feridas que abri, é o mínimo. Minha sorte, foi conhecer a Maureen, uma Queniana com um coração enorme, que foi minha interprete e, porque não, conselheira durante minha pesquisa. Sofremos juntas, discutimos a situação dessas mulheres e aprendemos tanto. Sei que poderei contar com ela para continuar os grupos, e isso me dá um pouco mais de paz para voltar. 
Fonte: lafrikana.com
Minha cabeça ainda dói, não sei se alguns dias na praia serão suficientes pra aliviar meu corpo e minha mente. Na verdade, cheguei a me sentir incoerente após tudo isso, injusta com essas pessoas por buscar prazer após lidar com tanto sofrimento. Mas isso, aprendi na Psicologia: quando lidamos com o flagelo do próximo, é preciso ser egoísta às vezes, nos permitir desvincular, ou viveremos vidas alheias, ao invés das nossas. É preciso deixar de se perguntar "eu mereço?" e afirmar mais pra nós mesmos que "eu mereço!". Eu mereço a família maravilhosa, o namorado incrível, e as pessoas altruístas que me permitiram estar aqui hoje. Ao mesmo tempo, não acho que essas mulheres merecem o marido machista, os militares abusadores e os filhos passando fome. Mas é preciso, então, saber meu limite. Vou dar meu melhor pra ajudá-las a encontrarem seu potencial, descobrirem o que elas realmente merecem, e não aceitarem nada menos que respeito. Mas esse final de semana também vou me respeitar um pouco, me permitir um pouco, me amar um pouco. 




domingo, 14 de fevereiro de 2016

Quando a motivação é uma Montanha Russa

Nesses 25 dias em Nairóbi, tive episódios de picos emocionais que vão desde um amor enorme pelo próximo, até uma frustração e desesperança sem fim. 
Devo admitir, é claro, que os momentos de amor são principalmente com as crianças. Elas são tão espontâneas, tão naturais, perguntando o dia inteiro como a gente está - até que descobrimos que "how are you?" provavelmente é uma das únicas coisas que eles sabem falar em inglês hehe. Eles se empolgam com a nossa chegada, e é claro que a gente se empolga junto! É uma energia muito boa ver tantos sorrisos por sua causa. E eles querem pegar na nossa mão, no nosso braço, talvez por curiosidade, e isso dá sim, uma grande esperança de um futuro melhor pra esse povo, pois ali está o futuro, naquelas crianças felizes em terem a oportunidade de estudar e estar na escola com os outros colegas. 
Outro momento de grande amor, compaixão, empatia, e ao mesmo tempo raiva e angústia, é entrevistando as mulheres. Agora, pode ser que eu entre em conflito com o pensamento de algumas pessoas, pode ser que eu pareça até intolerante, mas acredite, minha tolerância cultural é muito maior que da maioria das pessoas. Só que quando a cultura em questão envolve submissão da mulher, castração feminina (sim, por que é isso que circuncisão é) e cultura de estupro, minha tolerância dá uma balançada sim. Assim como quando um cara entra no Matatu (transporte público) com uma galinha viva, gritando dentro de um saco plástico. Me desculpem, mas nessas horas perco a vontade de ver o país se desenvolver, de ver essas pessoas terem condições de vida um pouco melhores... O único pensamento é que estão onde deveriam estar. Dói muito admitir isso, mas é o que passou pela minha cabeça naquele instante. Depois passa, reflito, e até entendo o porquê desses comportamentos. Mas aceitar, isso ainda é um desafio. Ainda bem que temos as crianças que restauram nossa fé, nosso amor, nossa paz. 

Meninos do projeto 50 Sorrisos segurando minha mão
Crianças da Escola Primária Kabiria


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Sobre histórias tristes que precisam ser contadas


"Antes de você começar a entrevista, ela quer te falar uma coisa", traduziu a interprete que está me ajudando na pesquisa, do Swahili pro Inglês. "Claro, pode falar!" - incentivei, quase pressentindo o que viria depois. E após algumas frases em Swahili, vindas de uma mulher de aparência jovem, mas cansada, abatida, veio a tradução: "ela gostaria que você pudesse dar um aconselhamento pra ela se sentir melhor, porque ela está muito deprimida, não tem vontade de fazer nada quando está em casa... Durante a guerra no Congo foi violentada por vários homens, e quando tentou resistir eles bateram muito nela com cinto, e ela ficou com graves problemas nas costas e nas pernas por causa disso. Agora, sempre que ela sente dores nas pernas e nas costas, ela lembra dos ataques. Os militares explodiram a casa dela e o pai e dois irmãos morreram nessa guerra. A mãe e um irmão ainda estão lá, e a guerra está para piorar, mas ela não tem dinheiro pra trazê-los pro Quênia, e isso é uma das coisas que a está mais angustiando neste momento. Às vezes, ela tem pesadelos com os ataques que sofreu, com a guerra no Congo, então acorda e sai correndo pelo meio da rua. Ela tem 6 filhos, e os mais velhos ainda lembram do que passaram no Congo, então quando veem policiais ou guardas armados por aqui, sentem muito medo, pois acham que podem ser atacados a qualquer momento..."
E foi assim que começou a primeira entrevista da minha pesquisa com os refugiados aqui em Nairóbi. É claro que não tive nenhum conselho pra dar. É claro que não tem nada que eu pudesse dizer pra amenizar o sofrimento daquela mulher. O que fiz, foi acolhimento, foi entender melhor o que aconteceu, sugerir que ela buscasse tratamento pro seu corpo, para talvez assim, amenizar as lembranças e marcas do passado. Não fiz muito.. Na verdade não fiz nada.. Terminei a entrevista me sentindo impotente, mas com vontade de voltar, formada, pra tratar de verdade essas pessoas. Mesmo assim, ela me agradeceu. Talvez porque vim de outro continente para ouvi-la, porque fiquei quase três horas ouvindo-a, sem julgar, e tentando achar pequenas soluções, tentando usar um pouquinho da teoria que aprendi, pra abrandar essa dor tão real. Na minha humilde opinião, tem muita culpa também. Tudo isso que tá rolando no Facebook sobre abuso contra a mulher, desmistificação de que o assédio é assentido pelas mulheres, também se aplica com essas. Expliquei isso pra ela, que a culpa de tudo isso não é dela, nem desses homens que fizeram isso, mas de toda a sociedade que continua cultivando isso. Ela concordou. Mesmo assim, isso não muda nada. Não diminui sua aflição, não apaga seu passado, não reverte fatos. É angustiante não ter o que fazer, além de acolher. 
Ela foi só a primeira, mas todos os outros relatos que vieram depois, foram tão pesados quanto. Eles se abrem, com a esperança de que isso vá ajudar. Que publicar suas memórias irá sensibilizar as pessoas, e que essas pessoas possam, talvez, mudar alguma coisa, e talvez, um dia, conseguiremos acabar com essa guerras que acabam com sonhos, destroem planos de vida e vidas.